Diário de Inovações

por Thaini Maiara Pereira Alves 

ilustração relógio

 28 de novembro de 2025

Para monitorar as chuvas, estudantes do 6º ano desenvolvem instrumentos, coletam dados e integram ciência, tecnologia e conhecimentos tradicionais

Sou professora de geografia há dez anos e, desde 2019, trabalho em escolas ribeirinhas de Manaus, capital do Amazonas. Aqui, a vida é atravessada pelas águas e a seca histórica de 2023 mudou tudo ao nosso redor.

O rio baixou como eu nunca tinha visto. As famílias ficaram isoladas, e nossa rotina escolar se desorganizou de um dia para o outro. Meus alunos estavam inquietos, preocupados, e muitos verbalizavam uma angústia que eu também sentia, mas que precisava ser transformada em algo construtivo.

Foi nesse contexto que nasceu o projeto Observatório da Estiagem – Ciência Cidadã na Amazônia, com a turma do 6º ano da Escola Municipal São João. Eu não queria apenas explicar o que é a estiagem, ou seja, um período prolongado de pouca ou nenhuma chuva, em que os rios, igarapés, lagos e poços começam a baixar gradualmente. Queria que eles próprios pudessem medir, monitorar e comunicar o que estavam vivendo. Meu desejo era transformar o medo em protagonismo.

Ciência como base

Durante a seca de 2023, percebi que era exatamente isso que eu precisava trazer para o centro do currículo: a experiência concreta do território, unindo ciência, saberes tradicionais e tecnologia acessível.

A proposta era oferecer aos estudantes o papel de jovens cientistas, com uma forma prática de monitorar o ambiente, da seguinte maneira: medir o nível do rio com uma régua linimétrica (instrumento de medição usado para monitorar o nível da água em rios, lagos, poços ou reservatórios) instalada por eles mesmos, coletar a quantidade de chuva em um pluviômetro caseiro, monitorar o nível de poços com um sensor eletrônico, registrar dados com multímetros (que permitem medir tensão, corrente e resistência — funções básicas para qualquer projeto que envolva circuitos, sensores ou eletrônica), além de observar a vida por meio de bioindicadores, como o comportamento animal e o aspecto da vegetação local.

Estruturei o projeto inspirada na pedagogia de Paulo Freire e com base em três princípios que sempre nortearam minha prática:

  • Ciência cidadã, para que os alunos assumissem o papel de pesquisadores;
  • Etnociência, para valorizar o conhecimento dos moradores mais antigos;
  • Tecnologia social, para criar instrumentos simples, baratos e funcionais.

Apresentei a proposta à FAPEAM (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas) e consegui bolsas para alguns estudantes. Esse apoio foi essencial para garantir a continuidade do projeto e aprofundar nossa metodologia. Com esse suporte, formei uma pequena equipe com oito estudantes: sete do 6º ano e um do 8º ano.

O projeto funcionou como uma iniciação científica prática. Em sala de aula, durante as aulas de geografia, realizamos oficinas de capacitação (eletrônica básica, construção dos instrumentos) e momentos de análise de dados (criação de planilhas e gráficos). 

O coração do projeto pulsava no contraturno, quando a equipe de bolsistas realizava o trabalho de campo. Eles mediam a régua do rio, verificavam o pluviômetro e o sensor do poço, conversam com moradores e observam os bioindicadores. Isso gerou nos alunos uma disciplina própria, um papel real como pesquisadores.

O apoio da FAPEAM foi importante, pois, em comunidades ribeirinhas, as turmas são pequenas, a logística é desafiadora e muitos estudantes enfrentam dificuldades para manter a frequência. As bolsas de iniciação científica do PCE (Programa Ciência na Escola) ofereceram incentivo financeiro e, mais importante, deram a esses jovens uma nova identidade: deixaram de ser apenas alunos para se tornarem pesquisadores bolsistas, ou melhor, jovens cientistas. Esse reconhecimento oficial elevou a autoestima e fortaleceu o compromisso diário da equipe.

Etapas do projeto

Começamos com oficinas práticas de nivelamento. Eu sabia que a teoria sozinha não sustentaria o interesse diante de uma crise real. Trabalhamos diretamente com os materiais e instrumentos, aprendendo na prática como funcionam sensores, protoboards, circuitos e multímetros.

O projeto durou cinco meses e foi uma imersão contínua, adaptada ao calendário das escolas ribeirinhas, que segue o ritmo da estiagem. Utilizamos algumas aulas de geografia para a base teórica e oficinas iniciais com toda a turma de jovens. A fase de monitoramento foi realizada majoritariamente no contraturno.

A execução prática ficou a cargo de três bolsistas do Programa de Ciência na Escola, uma iniciativa da FAPEAM, jovens cientistas escolhidos estrategicamente por morarem vizinhos à escola. Isso foi decisivo, pois os demais alunos dependem da lancha escolar e residem em locais distantes, não podendo permanecer após o horário de aula. A proximidade desses três estudantes viabilizou o monitoramento diário rigoroso. Cada um recebeu bolsa de R$ 300 durante cinco meses.

A escolha dos instrumentos foi pedagógica e política. Trabalhamos com eletrônica de baixo custo (como o chip CI 555 e o sensor ultrassônico HC-SR04) e materiais reutilizáveis (garrafas PET e madeira), desmistificando a ideia de que a ciência depende de equipamentos caros e inacessíveis. Queríamos mostrar que a ciência de ponta pode ser feita com poucos recursos, tornando o projeto viável, sustentável e replicável em outras escolas públicas.

Todos os instrumentos, com exceção dos multímetros e termômetros, foram construídos pelas próprias crianças. Tivemos protótipos antes de chegar às versões finais do pluviômetro de garrafa PET, do higrômetro de cabelo (instrumento utilizado para medir a umidade relativa do ar) e da régua linimétrica feita com madeira reaproveitada e tinta atóxica. 

O processo foi totalmente “mão na massa”. Ao construir o instrumento, o aluno deixa de ser um usuário passivo e se torna um criador de tecnologia, o que fortalece o senso de pertencimento e orgulho.

Todos os equipamentos foram instalados em pontos estratégicos na escola e na margem do rio. Os estudantes acessavam os dados diariamente, conforme escala semanal, registrando informações em planilhas e fotografando as medições.

Replicabilidade e inovação metodológica

Embora nosso projeto tenha durado cinco meses, seu modelo é completamente adaptável. Pode ser transformado em uma sequência didática mais curta e aplicada em escolas de diferentes contextos.

A ideia central é simples: criar estações meteorológicas escolares, onde os próprios alunos constroem sensores e aprendem habilidades como eletrônica básica, análise de dados e até uso de inteligência artificial. Qualquer professor pode ensinar o processo científico completo: construção, coleta, análise e divulgação de dados. Nesse processo, os estudantes contribuem com a comunidade e aprendem, na prática, sobre fenômenos naturais e as mudanças climáticas. 

Dados, IA e boletins comunitários

Ensinamos os jovens cientistas a organizar os dados em planilhas no Google Planilhas, usando os computadores do CTE (Centro de Tecnologia Educacional) da escola. Utilizamos a IA Gemini, do Google, para conversão e organização dos dados. Eles aprenderam a importância de registros precisos com data, hora e condições do tempo.

Cada estudante, conforme escala, coletava os dados dos sensores: pluviômetro, higrômetro, régua do rio (em centímetros) e sensor de poço (em milivolts). A turma também anotava os bioindicadores (presença de fumaça, botos, borboletas, cor das folhas, comportamento de aves, etc.).

As observações e hipóteses eram registradas no caderno de campo, um verdadeiro “tesouro” para eles. Alguns exemplos de anotações feitos pelos estudantes:

  • “Hoje, dia 15 de setembro, a régua marcou descida de 12 centímetros em 24 horas.” 
  • “O pluviômetro está seco há 5 dias.”

Um dado interessante foi o momento em que eles perceberam que a régua do nosso lago baixava mais rapidamente que o dado oficial do Porto de Manaus. Eles levantaram a hipótese de que o escoamento do lago é diferente do rio principal.

Saberes ancestrais e etnociência

O nosso projeto também contou com pesquisa e referência aos saberes tradicionais. Visitamos moradores mais antigos, pescadores e lideranças comunitárias que conhecem como poucos os sinais da vazante. Suas memórias e observações complementaram os dados dos sensores.

Muitas vezes, as falas dos mais velhos não coincidiam com os registros, o que gerou discussões sobre as mudanças climáticas. Outras vezes, coincidiam, mostrando que, mesmo sem rigor técnico, o saber tradicional é preciso e deve ser valorizado.

Essa integração também teve um papel afetivo: reforçar o sentimento de pertencimento ao território. Muitos jovens pensam em sair da comunidade. Ao vivenciarem essa troca com os mais velhos, passaram a enxergar valor em seu lugar de origem, e possibilidades por meio da educação.

Comunicação e impacto social

Os dados coletados deram origem a boletins diários, enviados em um grupo fechado de WhatsApp usado pela comunidade. As mensagens alertavam sobre baixa umidade e os riscos de queimar lixo, o que ajudou a reduzir essa prática.

Mesmo em dias sem aula ou com falha na conexão, os estudantes explicavam os atrasos e isso fortalecia a confiança da comunidade. Também criamos um blog que funciona como diário de bordo digital, com fotos, registros e tabelas:

Reconhecimento e legado para os jovens cientistas

O projeto conquistou o 1º lugar na Feira de Ciências da Divisão Distrital Zonal, da SEMED (Secretaria Municipal de Educação de Manaus), e também na Feira de Ciências da própria secretaria. Foi ainda finalista em dois prêmios nacionais: a Liga STEAM e o Prêmio Educador Transformador.

O Observatório da Estiagem tornou-se um modelo pedagógico interdisciplinar, integrando geografia, ciências, matemática e linguagens. Hoje, os estudantes se reconhecem como produtores de conhecimento, como jovens cientistas da Amazônia.

Mesmo diante das maiores adversidades climáticas, nossa prática conforma ser possível construir um aprendizado potente, útil e transformador com (e para) as crianças.

Acesse aqui o blog do projeto

Thaini Maiara Pereira Alves

Mestra em Ensino de Geografia pela Universidade de Brasília (UnB), especialista em Tecnologias Digitais para Educação e em Gestão Escolar. Professora de Geografia há dez anos, atua há cinco em escolas ribeirinhas de Manaus, na rede municipal (SEMED), onde desenvolve projetos de pesquisa-ação em parceria com o Programa Ciência na Escola (PCE), a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (FAPEAM) e o UNICEF. Seu trabalho integra ciência, tecnologia e saberes tradicionais para fortalecer o protagonismo de estudantes indígenas e ribeirinhos. Foi reconhecida como Destaque Pedagógico pela SEMED em 2022 e recebeu premiações como professora pesquisadora por projetos desenvolvidos em 2025.

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